domingo, 27 de abril de 2014



É deveras impressionante a forma como Marco Antonio Villa tenta reconstruir a memória do Golpe de 1964. Não satisfeito em desprezar os fatos concretos - tanto os de conhecimento público a décadas como os que têm sido revelados a pouco menos tempo - o contador de estórias (de qualidade duvidosa) agora tenta esbofetear qualquer rigor científico que a ciência histórica possa ter.

No seu afã de provar que o Golpe Militar de 64 foi democrática, patriótica, cristão e revolucionária, o memorialista da Revolução Redentora tenta atacar a figura pessoal de João Goulart. Ele - o estoriador - vem recorrentemente nas suas várias e lamentáveis manifestações investindo na tese de que Jango era o verdadeiro golpista (ele teria mandado cercar o Congresso), era corrupto (recebia dinheiro de empreiteira e que era um sujeito desprovido de caráter.

Tudo isso justificaria a eclosão de um Golpe brutal (que Villa afirma não ter sido tão brutal assim) em 64 (que segundo o contador de lorota, só começou em 68) e que duraria até 85 (até 79, corrige imediatamente o memorialista imparcial).

Em que tipo de mente, o caráter e os defeitos de um governante podem legitimar e justificar o sequestro do Estado de Direito num país? Em qualquer país decente que se imagine, tal postura intelectual, enormemente deprimente e desqualificada, seria devidamente rechaçada. Mas aqui neste país não: ela ganha ares de teoria de capa da Science.


A última estripulia de Villa é o mantra de que Jango, além de toda a incompetência, era um sujeito sem nenhuma estatura moral. E para tanto Villa se fundamenta em declarações de Celso Furtado, dadas em abril de 1999 (terá sido no dia 1°?), no qual teria afirmado que Jango “era um primitivo, um pobre de caráter”. 

O curioso é constatarmos a fonte de tal achado de Villa. A entrevista de Furtado, a chave de sua revolução interpretativa sobre o Golpe - e que prova que foi na verdade uma Revolução - se baseia numa entrevista dada a Revista masculina de nome Playboy. Isso mesmo meus caros, para provar a sua horripilante interpretação Villa apela para uma revista pornográfica. E com ela sempre debaixo do braço o Villa se volta com enorme truculência intelectual para contestar qualquer afirmação de que o Golpe de 64 instaurou um período de trevas para a democracia representativa. O desespero do historiador em positivar a "Revolução" de 64 é tanta, que ele não pensa duas vezes em unir História e Saliência.






A grande fonte das descobertas de Marco Villa. A profunda Playboy de abril de 99.



Não se quer aqui de maneira alguma desacreditar o depoimento de Celso, mas o que mais irrita na imparcialidade de Villa é o fato dele ignorar outros aspectos de sua entrevista. Villa só extrai aquilo que supostamente confirme a sua crença de que o Golpe tenha sido verdadeiramente revolucionário e redentor (ou um contra-golpe). Ele passa por cima de diversas outras denúncias de Celso. Fixando-se apenas naquele trecho, isolando-o de todo um contexto, parece até que Celso tenha tido a mesma concepção (torpe e nefasta) de Villa: de que o Golpe nos livrou de um presidente nefasto e torpe.

Não, não foi bem assim sr. Villa! E o senhor sabe disso. Basta ler direito e de maneira minimamente honesta as palavras de Celso.

Ora, o que terá impedido Villa de prestar atenção nas outras partes da entrevista? É bem provável que uma revista como a Playboy leve a isso. Estou apenas supondo - que fique claro! - que ele tenha de distraído com outra seções da revista masculina. O que é perfeitamente natural. É como se Villa se trancasse num banheiro com a revistinha e não quisesse ouvir mais ninguém.

Caros, vejamos, não é uma tarefa fácil manter a concentração, mesmo que numa análise séria, rigorosa, criteriosa e desapaixonada da entrevista de Celso Furtado na Playboy de abril de 1999. Pois mal abrimos e isso assim se nos abre:


O conteúdo da entrevista de Celso Furtado parece fascinar a todos.


A despeito de tantas distrações - bobas, é claro, nada que afete a missão de um historiador comprometido com a verdade e com o rigor do ofício do Bloch - é indisfarçável o gozo do historiador em destruir com a imagem democrática de Jango. E usa Celso como principal arma.

Mas se Villa fosse mais cuidadoso ele poderia se basear em outros depoimentos do mesmo personagem. Vejamos o que ele diz numa entrevista dada ao Estado de São Paulo, mais ou menos na mesma época. Uma visão mais equilibrada se nos apresenta.
 

Perguntado sobre os responsáveis pelo Golpe, Celso segue imputando grande responsabilidade a Jango, mas......


Tenho a impressão que a responsabilidade do golpe cabe tanto ao Jango quanto ao Lacerda. A minha impressão é que o problema da sucessão do Jango seria muito difícil e complicado, no caso de vitória do Lacerda. João Goulart teria que enfrentar um guerreiro nato que só crescia e se agigantava brigando.



Sobre a tal ameaça do fantasma do Comunismo (que o historiador segue dando tanto crédito) Celso é taxativo:


 No Brasil, os militares acreditaram no espantalho e acabaram sendo enganados, como também foram enganados os que acreditaram que os militares só permaneceriam dois anos no poder, antes de devolvê-lo aos civis. Esse foi o caso do grupo mineiro, do Magalhães Pinto e outros, todos a espera da tradicional acomodação que acabou não acontecendo.



Mas disso Villa não quer saber. Ele só quer saber de se ocupar da Playboy - isto é, da entrevista de Celso na mesma. Pronunciamentos ponderados como esse de Celso, analisando vários ângulos e possibilidades de uma mesma questão, cogitando diferentes hipóteses, ou seja, tentando perceber a complexidade de um processo histórico, não, isso não interessa a Villa. O que interessa é mostrar a fraqueza do Jango.

Ou seria uma questão de distração? Mas o que teria distraído tanto ao Villa?




Débora Stroligo também se mostra surpresa com as revelações de Furtado.




E, cá pra nós, passados tantos anos, e de tanto Villa ocupar uma mão com a Playboy de abril de 99 e, com a outra mão, com seus cinco dedos, escrever tanto texto gozado contra Jango, alguém aí teria coragem de pedir essa revista emprestada a ele?



sexta-feira, 25 de abril de 2014





 
Dentre tantas ofensas perpetradas contra a verdade histórica pela cambada saudosa da ditadura e seus crimes contra a humanidade, uma em especial impressiona pela fachada tecnocrática e um certo ar de objetividade – a de afirmar que a revolução “redentora e gloriosa” fez o que fez (destruindo, massacrando e torturando milhares de pessoas), mas logrou modernizar o Brasil, em especial a sua infraestrutura e o campo (revolução agrícola). Ela – a Ditadura – matou sim (“e daí?”), mas melhorou esse país, fez as reformas necessárias, fez ele mais forte, mais pujante. Quanto engodo.

...

(Artigo completo aqui no CORREIO DA CIDADANIA)


domingo, 13 de abril de 2014




Tentem imaginar a cena.
Num certo país ao norte da América do Sul, um dos governos mais autoritários, totalitários, comunistas e chavistas do mundo (sim, a imprensa na hora de elaborar conceitos só perde para a filósofa Valeska Popozuda) manda enviar tropas federais para conter uma onda de protestos sangrentos, violentos e de contornos fascistas por parte do segmento mais conservador da sociedade, a classe média e a elite econômica – bastante insatisfeitas com a aproximação das classes “mais baixas” na estrutura social como decorrência das políticas sociais implementadas ainda ao tempo de Chávez, e que de fato foram uma das mais bem sucedidas do mundo, mas, claro, vistas como a manifestação de um satânico projeto de implantação do comunismo bolivariano.

Tais segmentos fascistas querem fazer a roda do tempo girar para trás de novo. Ver o populacho regredir, parar de falar de política e de fazê-la acontecer em favor de seus interesses. Que o povinho preto, pobre, favelado e mulambento volte a ser submisso; que volte a ter consciência do seu lugar (bem subalterno) e se comporte como tal.

Para impedir que a vaga fascista de extrema-direita viceje o governo de Maduro fez cumprir as prerrogativas que a Carta Constitucional lhe confere. Botou as tropas nas ruas para conter o terrorismo dessa direita.

Mas mal as tropas pisaram o solo das cidades aterrorizadas pela sanha extremista da “oposição” fascista, o pasquim global do golpismo iniciou uma virulenta ofensiva midiática de contra-informação, proclamando para o quatro ventos que se tratava de mais uma demonstração de autoritarismo de um dos governos mais ditatoriais da história recente da América Latina.  (Seria cômico se não fosse trágico se isso não ocorresse ao mesmo tempo que aqui se comemora os 50 anos do Golpe Militar de 1964 – o qual contou com extremada simpatia e apoio do pasquim global.)

O envio de tropas é mais um claro indício do desprezo que o governo Maduro demonstra pelos “verdadeiros valores democráticos”, a sua recusa em aceitar conviver e respeitar quem lhe faz “oposição”, o seu ódio pela pluralidade de idéias e opiniões – mais uma vez, o cinismo aqui dá o tom, ainda mais vindo de um veículo comprometido com a defesa radical do monopólio das telecomunicações e do uso aberrante da máquina judiciária contra os seus concorrentes e opositores.

Bom, estando certo ou errado, essa é a opinião do pasquim e a forma que ele encontrou para enaltecer os símbolos dessa nossa conhecida de nome Democracia.

Mas muito pior do que estar errado, o pasquim se mostra um incurável órgão golpista esquizofrênico.

A mesma iniciativa que na Venezuela é vista como um golpe contra a cidadania e os valores democráticos, são tidos e havidos na mais nova ocupação militar das favelas do Rio como expressão do mais desbragado comprometimento com a... cidadania e os valores democráticos.

As tropas das forças armadas ocupam novamente algumas das favelas cariocas, com armas em punho, com escopetas apontadas indiscriminadamente para as cabeças dos seus moradores. Mais uma vez se consagra a idéia de que os moradores pretos e favelados devem ser alvos ou de políticas públicas pobres (e de quinta categoria, posto que voltada para cidadãos de segunda classe) ou de repressão armada direta. Pois só assim para esse povinho se colocar no seu lugar. É essa a política que resolve a situação desse tipo de raça.

E escola? Cadê hospital, posto de saúde, coleta de lixo, esgoto, água potável, banco, correios, segurança, teatro, cinema, biblioteca? Cadê a cidadania? Cadê a Justiça? Cadê a Liberdade? Cadê o Estado de Direito? Cadê os direitos? Cadê Amarildo?

Mas vocês só podem estar brincando? – assim indagaria o pasquim da Família (da Zona Sul) Com Deus.

É muito estranho que para um jornal com esse tipo de mentalidade, que algumas  categorias sociais (e raciais), possam ter a audácia de querer algo mais do que um prato de comida e uma cama para descansar o esqueleto.

Política pública e social não é para qualquer um. Política para pobre, a verdadeira, a mais eficaz é aquela que se baseia no poder do fuzil e no peso de tanques e caveirões. E nada mais. Se na pátria de Maduro tal iniciativa é abominada, aqui, ela é prontamente festejada pelo pasquim e seus companheiros de quadrilha midiática.

As ações militares que subjugam e impõem medo aos cidadãos são apresentadas como a reação necessária das forças de segurança contra os “inimigos” da paz, da cidade e dos cidadãos decentes.


Mas se olharmos com mais atenção, vamos perceber que longe de incoerente, o pasquim faz uso de um argumento de uma lógica impecável, de uma coerência cartesiana: a democracia no mundo é perfeita, o que estraga é a droga do pobre! Tanto aqui como na Venezuela.

Assim pensando, a mídia golpista e elitista sedimenta o senso comum que ceifa vidas e famílias. Essa mídia é responsável sim pelos Amarildos e Cláudias de todas as noites. Essa mídia está toda suja do sangue dessa gente. Mata com impunidade, assim lhe permite a falta de democracia dos meios de comunicação desse país.

Leonardo Soares é historiador.



domingo, 6 de abril de 2014




Os acontecimentos recentes da Venezuela e o movimento grevista dos garis da cidade do Rio de Janeiro no início de março de 2014, em pleno carnaval, e a forma como a grande imprensa brasileira moldou a cobertura sobre tais eventos nos fazem perceber o quanto o tema analisado pelos pesquisadores argentinos María Verónica Secreto e Norberto Ferrero se mantém vivo - em mentes, corações e vocabulário de muitos escribas nas redações refrigeradas desse país afora.


Em Os Pobres e a Política os autores passeiam por diversos temas da história latino-americana, com especial ênfase nos países da América do Sul, procurando demonstrar como foi sendo gestado ao longo de séculos uma tensa e desigual estrutura de relações entre as elites políticas e as classes populares (os pobres). O estudo resumido de eventos como as guerras de independência, os movimentos rurais (desde pelo menos o século XIX), o trabalho escravo (e forçado) e os movimentos sociais evidenciam como tal desigualdade se manifesta no simples fato de que historicamente “o populacho”, a “massa ignara”, a “ralé sórdida”, em suma, o “povo” é visto como incapaz de agir politicamente, de pensar a sua situação em termos políticos, de vivê-la e construir significados e possibilidades a partir dela.


Os eflúvios do pensamento racial da segunda metade do século XIX se fazem sentir: mas se naquele o legado racial impedia o negro, o índio e o mestiço de vislumbrar qualquer aspecto da vida que não se resumisse a sua miserável e sórdida busca pela sobrevivência – tal qual um ser bastante primitivo, sem cultura, bárbaro etc. – hoje uma sutil adequação foi feita a tal raciocínio, até porque a fragorosa derrota do nazismo foi a pá de cal no discurso racial. Mas a necessidade de estigmatizar certos segmentos se manteve firme. O nazismo sim foi derrotado, já o sistema capitalista de dominação de classe não. Daí a perenidade do ato de desqualificação do(s) pobre(s). Incapaz, inepto, inconsciente, despolitizado e místico não por fatores genéticos. Mas por questões culturais (clientelismo passado de geração em geração), pelo fatalismo estrutural legado por sua condição de classe (o sistema de exploração o massacra a ponto de lhe embotar qualquer possibilidade de superação de sua miserável existência pela via da política) e razões históricas (a sociedade civil na América Latina sempre foi gelatinosa).


Os autores começam a desmontar tal perspectiva exatamente pelo trabalho de investigação de caráter histórico. Em “A plebe nas guerras das independências”, o primeiro capítulo do livro, os autores demonstram que as camadas populares foram sim parte importantíssima desse processo, atuando como protagonista, influenciando no resultado final das lutas e apresentando demandas e reivindicações distintas da elite. Espaço especial é dedicado à luta dos negros escravizados do Haiti, movimento único na história, mas que por fatores ideológicos e políticos (inclusive raciais) foi apagado da historiografia tradicional.

Em “A terra nos movimentos sociais” eles enfatizam a importância da luta de segmentos indígenas na luta pelo direito à terra na antiga América espanhola; luta cujas marcas se fazem visíveis até hoje, nos embates contra as multinacionais e empresas do agronegócio em pleno terceiro milênio. Aliás, a investigação histórica nos permite ver que idéias e conceitos como cidadania, igualdade e estado moderno quando transpostos ao plano concreto da realidade se mostra prenhe de contradições e incoerências, motivando por si só a eclosão de uma série de conflitos entre diversos agentes sociais.


No terceiro capítulo, os autores reconstituem com grande competência e clareza todo o debate em torno do trabalho escravo desde o século XIX, no mundo – desde as ações da Anti-slavery International em 1839 - e no Brasil. Os autores demonstram que foi aqui que o conceito de trabalho escravo ganhou maior repercussão, para o que muito contribuiu a larga experiência da escravidão. Já no mundo como um todo prefere-se adotar a expressão trabalho forçado, “o que remete a uma especificidade do mercado de trabalho contemporâneo”. Os autores chegam a tal conclusão após analisar o amplo debate realizado por grupos, entidades e governos de diversos países por mais de um século, desde o Slavery Abolition Act de 1833, passando por acordos e tratados sancionados pela Sociedade das Nações e pela Organização das Nações Unidas (ONU), até a elaboração da Convenção 105 da Organização Internacional do Trabalho (OIT).


O ponto principal desse capítulo é a problematização e crítica que os autores fazem do termo trabalho escravo tal como pensado no Brasil. Além de guardar certo vício paternalista – ao encarar o trabalhador como incapaz e uma vítima congênita, o termo traz em si uma certa absolvição do caráter exploratório do próprio sistema capitalista, colocando a culpa nos ombros de uma suposta falta de caráter de patrões “desumanos”, por isso, na avaliação dos autores: “a utilização de outra terminologia como servidão por dívidas permite colocar a culpa no culpado e não na vítima, porque implica o reconhecimento do capitalista como um explorador em potencial no momento em que as condições de produção o demandem, e não simplesmente como uma perversão particular ou um retorno às formas e práticas sociais do século XIX”.  

No quarto e último capítulo, os autores destacam a questão dos movimentos sociais, analisando as suas relações com o Estado, a construção de identidades, a organização e a construção da forma de ação social de nome protesto, a atuação dos pobres etc. Mais uma vez os autores utilizam temas gerais como pano de fundo para a (re)problematização de conceitos consagrados e – diríamos - ossificados em certo imaginário acadêmico. Um dos mais notórios é certamente o do clientelismo. E aqui os autores mais uma vez evidenciam como as elites políticas e sociais, e, vasta parcela dos intelectuais acadêmicos (seja de “esquerda” ou de “direita”) operaram com esse conceito em diversas análises sobre a relação entre Estado e Sociedade Civil (em especial no chamado contexto de vigência do Populismo), com o estrito objetivo de desqualificar, minimizar e despolitizar as ações de protesto e de intervenção na política por parte das camadas populares, ou, da “gente pobre” das favelas, periferias, subúrbios, morros, villas e barrios.


Como bem alertam os autores no tocante a participação desses pobres neste e noutros capítulos de nossa história, mais frutífero do que o apego a conceitos claramente pejorativos e estigmatizadores, é preciso ir fundo nesta história, percebendo concretamente o que está em jogo, que “variáveis ingressam na política dos pobres e mostram que eles fazem política, embora não da forma como os partidos e os políticos tradicionais gostariam ou prescrevem”, até por que eles “fazem política da forma como eles entendem que deve ser feita”.

Uma pena que a classe jornalística leia tão pouco. Com esse simples livrinho muita atrocidade deixaria de ser escrita. Melhor para o Justo Veríssimo (o do " - Quero que o pobre se exploda!"), que de sua catacumba vê tranquilo e satisfeito a reprodução do seu legado nos jornais da grande imprensa. O que diz muito do espírito liberal-autoritário até hoje reinante em nossas elites "letradas"....



sexta-feira, 4 de abril de 2014








Leonardo Soares dos Santos
Professor de História da UFF


Não é incomum ouvirmos da boca raivosa daqueles que ainda têm coragem de defender o regime implantado nesse país a partir de 1964 que em que pese “escassos mortos” (mas que fizeram por onde serem aniquilados) e “alguns excessos” ocorridos nos porões da “Revolução”(sic), ele, o Regime, além de ter restabelecido a autoridade, o amor aos valores ligados à família e a Deus(!), a Democracia(sic) etc., teria se notabilizado pelo seu inegável sucesso em termos econômicos. O qual se manifestaria principalmente em duas áreas: o do crescimento da economia (o Produto Interno Bruto) e as várias obras que fizeram dessa Nação um verdadeiro e continental canteiro de obras. Além de pretensioso, o argumento é por demais fajuto.



O crescimento foi enorme sim, mas sem nenhuma consistência, todo ele baseado num irresponsável endividamento público, que de pouco mais de 3 bilhões de dólares ao tempo de Jango saltou para estratosféricos 100 bilhões com Figueiredo. E este ainda tendo que se humilhar para pedir dinheiro emprestado ao FMI, alegando que o país estava simplesmente falido.


O PIB inchou sim – essa é a expressão correta, mas a forma como isso se deu beirou a covardia: extremamente concentrado, beneficiando e locupletando uma elite e algumas mínimas parcelas da classe média. Do outro lado, bem, melhor seria dizer: lá embaixo no abismo, a massa trabalhadora empobrecia a olhos vistos, era vitimada por uma absurda política de arrocho salarial (numa antecipação do que viria a ocorrer novamente com o ajuste neoliberal de FHC). O povo, trabalhador e pobre, a quem os militares prometeram salvar das “garras do comunismo”(cubano-sino-soviético...) era covardemente aviltado. E era deste povo, que além de arrancar suor e sangue, que o Regime extraia dinheiro e mais dinheiro para financiar a compra a crédito barato de secador de cabelo, TV, rádio, geladeiras, automóveis, vitrolas, ferro de passar e outros artigos essenciais por parte de um segmento privilegiado, a das Madames da Marcha - este sim protegido. E hoje com toda razão tem porque chorar pela volta da ditadura. 

Nesta a classe operária tinha que trabalhar duro para que elas (as madames) deixassem suas perucas brilhando.


O ridículo a que se chega por parte dos saudosistas só se agrava quando passam a recorrer aos chamados “grandes empreendimentos” do Regime. Pura bazófia. Obras sem nenhuma transparência e controle de gastos – quem denunciasse era morto; inúmeras se mostraram um fracasso (Transamazônica, estádios de futebol gigantescos em praças sem nenhum apelo, usina de Angra); e só contribuíram para o alarmante endividamento do país, fazendo a alegria dos bancos internacionais e empreiteiras.


E se já não bastassem as construções bizarras, ao menos no Rio a Ditadura primou também pela destruição insana de preciosidades do espaço carioca: Mercado Municipal e Palácio Monroe. Marcos da Cidade Maravilhosa, postos abaixo pela boçalidade tecnocrática. Um ato simplesmente criminoso. Mais um dentre milhares.


E mais do que a corrupção, muitas dessas obras acabaram ceifando a vida de inúmeros trabalhadores. Calcula-se que só nas rodovias construídas na Região Amazônica 8 mil índios tenham sido exterminados. Para “limpar o território” recorreu-se fartamente às práticas denominadas “correrias”, expedições organizadas para dizimar etnias indígenas até o final da década de 1970, principalmente no sul do Acre e do Amazonas. Ou seja, estamos diante de um verdadeiro genocídio. 

E não esqueçamos da Ponte Rio-Niterói, tão endeusada, mas que vitimou centenas de operários, que trabalhavam sem qualquer proteção, em situações de flagrante perigo. Resultado: muitos deles acabaram sendo “concretados” vivos.




Recorrer à realização de obras faraônicas para enaltecer a selvagem Ditadura Militar que foi imposta aos cidadãos e cidadãs brasileiros com base no terror e – muito pior! – tentar absolvê-la dos seus inúmeros crimes (prisões arbitrárias, torturas, sevícias, choques, afogamentos, perseguições, estupros, ocultação de cadáveres etc.) é não apenas um insulto ao mais reles senso de dignidade, como uma afronta à verdade histórica.


Se já não bastassem os crimes prescritos contra seres humanos, as viúvas da sanguinária Ditadura “cívica, redentora, cristã e democrática“ seguem com seu espetáculo abominável de agressões, só que agora tentando vitimar a própria História e, de quebra, a Razão. Triste!


sábado, 29 de março de 2014




Leonardo Soares dos Santos
Professor de História – UFF de Campos


Venho estudando com afinco o tema do pensamento liberal já algum tempo e tenho me surpreendido com o que tenho conseguido acumular. O legado liberal visto a partir de sua evolução desde o século XVIII é simplesmente assustador. E espero um dia reunir isso num texto de maneira bem sintética, o que não será fácil, diante de tantos exemplos aterradores de aversão ao gênero humano e ao próprio planeta.

O curioso é que uma das análises mais precisas sobre o liberalismo foi feita há quase 10 anos atrás por um autor não muito apreciado pela esquerda ortodoxa. Falo das reflexões de Boaventura de Sousa Santos apresentadas em “Pela mão de Alice” (São Paulo: Cortez, 2006).

É claro que não se trata de uma exposição exaustiva sobre o liberalismo, mas de apenas um aspecto dele – a sua teoria política. E mesmo assim não deixa de impressionar.

O sociólogo português parte do pressuposto de que a modernidade desde sempre teve como pilar o conceito de regulação (contraposto ao improviso e arbitrariedade dos tempos feudais), o qual sempre conviveu de maneira extremamente tensa e desequilibrada com o pilar da emancipação, este, sem dúvida, o mais subversivo e revolucionário.

Segundo Boaventura, a teoria política liberal desde os seus primórdios reproduziu, embora de forma bem sofisticada, o desequilíbrio entre aqueles pilares. E mais: tal teoria consistiu no quase sepultamento da emancipação, quando não na sua criminalização.

Todo o problema se manifesta no nascedouro de tal pensamento. Boaventura nota que desde então seus ideólogos se debatiam com a distinção de duas subjetividades: a subjetividade coletiva do Estado centralizado e a subjetividade atomizada dos cidadãos autônomos e livres. É desse embate teórico que nasce conceitos fundamentais do pensamento ocidental. Tentando compatibilizar as duas subjetividades, os liberais reelaboram os conceitos de Estado e sociedade civil e criam o conceito-ficção de contrato social.

Até aí, nada demais. Mais do que conceitos, eles representam diferentes instâncias, ou, verdadeiros agentes. Cada um representando uma subjetividade.

O nó górdio reside exatamente na descrição de cada um desses agentes e de qual a finalidade sagrada de cada um – incluindo aqui o contrato social. Pois, afinal, para que servem?

O Estado, sendo embora um sujeito monumental, visa tão-só garantir a segurança da vida (Hobbes) e da propriedade (Locke) dos indivíduos na prossecução privada dos seus interesses particulares segundo as regras próprias e naturais da propriedade e do mercado, isto é, da sociedade civil. Sendo os cidadãos livres e autônomos, o poder do Estado só pode assentar no consentimento deles e a obediência que lhe é devida só pode resultar de uma auto-obrigação assumida, isto é, do contrato social (p. 237).

Para além do fato de tal formulação ser basicamente normativa, ela se funda num sem número de idealizações. E, além disso, acaba restringindo a dimensão da emancipação a aspectos referentes ao mercado. O que se encontra consagrado hoje na fórmula: “ - Sou feliz e me realizo na medida em que posso consumir!”. Em outras palavras: a subjetividade do cidadão só pode ser satisfeita pelo e no mercado. Mas a captura do mercado não é só da subjetividade, mas como veremos, da própria cidadania.

 Nas diferentes fases do capitalismo, o pensamento liberal sempre tendeu a valorizar mais o mercado. Na atual fase do capitalismo, ele tomaria até o papel do Estado no plano da regulação econômica. Certo? Pela metade. Pois a regulação do mercado (preços, salários, taxas de câmbio, de juros etc.) atingiria até o plano político. O português chama a esse fenômeno de “desenvolvimento hipertrofiado do princípio do mercado em detrimento do princípio do Estado e de ambos em detrimento do princípio da comunidade”.

Não é por outro motivo que os ditos liberais sintam verdadeiro pavor diante de expressões como “democracia popular”, “manifestações públicas” e “pressão da sociedade”.

Curiosamente, um evento por demais despretensioso veio ilustrar a mentalidade autoritária e barbaramente anti-democrática dos liberais do mundo empresarial. Na noite da 26ª Edição do Prêmio Shell (evento de premiação do ramo teatral), uma das contempladas, a atriz Fernanda Azevedo, fez questão de ler um pequeno trecho de um escrito de Eduardo Galeano com denúncias á empresa promotora:

No início de 1995, o gerente geral da Shell na Nigéria explicou assim o apoio de sua empresa à ditadura militar nesse país: “Para uma empresa comercial, que se propõe a realizar investimentos, é necessário um ambiente de estabilidade. As ditaduras oferecem isso"

De fato, como antes frisado, as empresas têm muito mais facilidade de implementar seus empreendimentos (principalmente os “mega”) em ambientes de pouca ou nenhuma liberdade política. Quanto a isso não há nenhuma surpresa.  O erro se manifesta quando alguém munido de bastante senso comum e desinformação declara ser isso uma incoerência: o apoio do ditaduras por liberais. Incoerência? Nada mais falso.
Desde sempre os liberais adotaram uma visão bastante restritiva e excludente no tocante a participação dos indivíduos junto ao Estado e a vida pública como um todo. Ao contrário do que diz respeito ao Mercado – onde todos estariam aptos a participar (embora defendesse isso muito cinicamente, pois só assim para imaginar que a participação numa empresa se desse por um ato de vontade). E é neste ponto que os liberais agiram firmemente para solapar, tanto ao nível teórico como político, o princípio da comunidade (que, pelo contrário, foi ardorosamente defendido por Rousseau, não à toa, um dos emblemas da Revolução Francesa).

Não custa lembrar que os liberais nunca foram adeptos do sufrágio universal, pois se no mundo do mercado nunca advogassem explicitamente critérios de diferenciação e hierarquização; no do Estado e da política, perspectiva bem diferente seria adotada – nem todos poderiam ou teriam capacidade de participar politicamente das atividades do Estado. Fruto de tal postura é a instituição do voto censitário. Só vota e pode ser votado quem tem uma certa renda ou patrimônio, amealhado junto e pelo mercado. Aqui o Estado é escandalosamente colonizado pelos princípios do mercado. Tiranizado, poderíamos também afirmar.

Mas a gigantesca pressão dos movimentos operários no século XIX empurrou literalmente o seu desejo pelo voto goela abaixo. O sufrágio universal foi conseguido com base em muito suor e sangue. Sabendo ser inútil lutar contra isso, os liberais do XIX passaram a resgatar um dos princípios semeados pela teoria política liberal em fins do XVIII. Se não era possível proibir a participação popular no governo do Estado, investiram com tudo na tentativa de restringir ao máximo tal participação. Daí a difusão da idéia de que o “princípio da cidadania abrange exclusivamente a cidadania civil e política e o seu exercício reside exclusivamente no voto.” (p. 238)

Conseqüentemente, os liberais devotarão uma enorme paixão pelos princípios da democracia representativa. Mas na lógica liberal a representação é alicerçada “na distância, na diferenciação e mesmo na opacidade entre representante e representado”.

Kant, no Projeto de Paz Perpétua, de 1795, definiu melhor que ninguém o caráter paradoxal da representação democrática ao afirmar que a representatividade dos representantes é tanto maior quanto menor for o seu número e quanto maior for o número dos representados.(id.)

Toda ação diferente e além dos limites do voto é abertamente desencorajada, não raro criminalizada. O que torna possível que os liberais adotem como verdadeiro chavão a frase: “A única arma política do cidadão é o voto!”. Nada é aceitável além dos marcos da democracia representativa. Se pudessem, os adeptos de tal “democracia” (simulacros de ditaduras stalinistas) seriam devidamente encarcerados junto aos criminosos mais perigosos – eis o sonho de consumo de muitos liberais, alojados em Institutos de reacionarismo milenar.

Tal afirmação, aparentemente inocente, implica na total marginalização do princípio da comunidade defendido por Rousseau – não é por acaso que esse passa a ser associado exclusivamente aos jacobinos e ao chamado “período do terror” da Revolução Francesa. Tem-se assim a imagem do apóstolo do terrorismo, precursor da Al Qaeda.

Na verdade, o contrato social defendido por Rousseau é muito diferente daquele dos liberais. Para o francês
A vontade geral tem de ser construída com a participação efetiva dos cidadãos, de modo autônomo e solidário, sem delegações que retirem transparência à relação entre “soberania” e “governo”. (p. 239)

Em nenhum momento passa pela cabeça de Rousseau tolher a dimensão da comunidade por meio de uma subordinação ao Estado, e muito menos ao mercado.

Por esta razão, o contrato social assenta, não numa obrigação política vertical cidadão-Estado, como sucede no modelo liberal, mas antes numa obrigação política horizontal cidadão-cidadão na base da qual é possível fundar uma associação política participativa. E, para isso, a igualdade formal entre os cidadãos não chega... (id.)

Portanto, é num esquema mental frontalmente oposto ao do pensador francês, forjado há mais de três séculos, que se assenta a aversão mostrada por diversos segmentos da classe política, da sociedade civil e agentes do mercado pelas manifestações políticas que tomaram as ruas do país desde meados de 2013.

É nesse esquema mental, forjado pela ideologia liberal, que repousa uma profunda ojeriza por manifestações de protesto e ações coletivas de contestação que ousem ocupar o espaço público. E que são pensados por aqueles agentes apenas como vias a servirem para o trânsito (supostamente rápido e eficiente) de mão-de-obra e mercadorias. Até porque a própria visão do espaço público é formatada pelo que seriam os ditames do mercado. É de tal esquema que brota quase que instintivamente da boca de administradores que assim que se deparam com um movimento grevista o classifiquem como ato de “banditismo”, “bagunça de agitador” e ações de “meliantes” – conforme ficou fartamente evidenciado na greve dos garis no último carnaval carioca. Vitoriosa, a despeito da truculência do prefeito e dos ataques da imprensa corporativa.

Ora, como esquecer a reação da imprensa aos próprios protestos que varreram o Brasil, tidos como atos de “vândalos”, “baderneiros”, “terroristas”, “infiltrados”, “elementos ligados a partidos políticos(!)” e que tais?

Em suma: o pensamento liberal não tem o menor apreço pelos valores e instituições democráticas. A não ser que essas facilitem ou se subordinem, sem qualquer contestação, aos ditames e “necessidades” dos setores ligados ao mercado.

Pois do contrário são devidamente esmagadas, como cana na moenda. Como assim ficou claro nas intervenções dos EUA no Afeganistão e Iraque, quando da pilhagem de países europeus na África e vários outros recantos do planeta, alvos de agressivo investimento dos setores do capitalismo global. Nada casual o fato de que muitos desses empreendimentos tenham sido viabilizados após ilegais incursões militares.

Na verdade, os liberais prezam um modelo de vida política dominado pela apatia, pelo distanciamento da administração do Estado. Quanto mais longe o cidadão do governo da coisa pública e quanto mais ele delegar seus direitos a um representante, melhor para o funcionamento de uma democracia toda ela formatada pelos princípios castradores de um cidadão cuja dimensão ativa só é bem vista se ela for canalizada para o mercado.

Melhor que isso, como bem afirmou um insigne representante dessa corrente, só uma ditadura.
Por sinal, nada mais coerente o apoio de vários intelectuais, entidades e empresas adeptas do liberalismo às brutais, covardes e sanguinárias ditaduras que assolaram a América Latina entre 1964 e 1990. Não há como esquecer que o primeiro governo a implantar medidas neoliberais tenha sido exatamente o do General Augusto Pinochet, com a assessoria de Milton Friedman, economista e arauto do neoliberalismo.